sim, eu me lembro como se fosse hoje. eu fiquei cerca de quatro horas sentado naquele corredor frio e branco, mas tão branco, de um jeito que incomodava. e a coisa toda parecia que nunca ia acontecer, o que, até certo ponto, me aliviava, porque, sinceramente, eu sei-lá como a vida seria depois disso. ninguém tá realmente preparado, ninguém é forte o bastante pra lidar tranquilamente com a morte. por mais que a gente se prepare, leia livros, artigos, pesquise no Google, não há um tutorial pra esse tipo de coisa. ninguém realmente tá preparado, ninguém é forte o bastante pra lidar tranquilamente com a vida.
então, eu tava alí tentando estabelecer um plano, tentando transformar uma vida inteira. é claro que vocês vão pensar que eu tive tempo, que eu deveria ter pensado nisso antes, que foram meses até que chegasse a hora, mas foi somente naquele momento que eu consegui pensar. é aquela coisa, seu time passa o campeonato inteiro perdendo, jogando mal e aí na última rodada, no último jogo, o rebaixamento já está consumado, você sabe disso. mas você assiste o jogo e tem esperança, sabe-se lá em que ou por que, mas você tem. e aí quando acaba e o teu time tá na segunda divisão, você fica puto, chateado, culpa o juiz, o outro time lá que tava praticamente na mesma situação, mas que resolveu ganhar no último jogo, essas coisas. é assim, sabe? não que eu esteja culpando alguém, não, não, nada disso. eu só tô tentando explicar que certas coisas demoram pra fazer sentido. é tipo acabar o namoro, mas só conseguir seguir em frente ao ver a sua ex-namorada toda feliz com outro cara. é um tapa na cara, todo mundo precisa de um tapa na cara.
a verdade é que depois dessas quatro horas eu ainda não sabia o que seria da vida. a gente saiu do hospital e foi pra casa com uma certa tranquilidade, mas é assustador e também é avassalador ao mesmo tempo. e eu não falo por mim, porque tá tudo bem, digamos que eu tenha adquirido habilidades pra lidar com a vida, mas é que semana passada eu vi um grupinho de crianças brincando no parquinho perto de casa e isso me deixou pra lá de deprimido. eles estavam lá brincando e cantando aquelas musiquinhas típicas de criança, aquelas que servem só pra infernizar a vida daqueles mais fraquinhos ou diferentes. e no cantinho da caixa de areia, tinha uma garotinha sozinha agitando os braços rapidamente de um jeito meio violento até, sem levantar a cabeça. logo em seguida, o grupinho se aproximou dela, fez uma roda e aumentou o volume daquela cantoria insuportável. eu tive uma vontade súbita de me jogar no meio daquela criançada, pegar a menina no colo e sair correndo daquele lugar, mas aí pensei que poderiam achar que fosse sequestro, que eu fosse algum tipo de estuprador ou qualquer coisa terrível do gênero.
eu até me aproximei, mas chegou uma mulher, que eu deduzi ser a mãe da garotinha, e as crianças se dispersaram. ela veio até mim e disse pra eu não me incomodar, porque as crianças não iam fazer nada demais e que a pequena Julia estava bem. segundo a mulher, a menina tinha um poder especial e conseguia se defender das provocações da maneira mais genial possível, é só ela tapar os ouvidos e olhos e então ela consegue bloquear a entrada de informações em seu cérebro. ela tem o poder de bloquear todo o mundo exterior para não ficar sobrecarregada. “incrível, não é?”, ela disse. A mulher ainda falou que a pequena agitava os braços, porque tinha a sensação de eles estavam pegando fogo. eu não sou bom em dar continuidade a conversas com pessoas que não conheço, nunca fui. então, eu sorri, a mulher sorriu de volta e eu fui embora.
fiquei com essa história na cabeça por muito tempo, só conseguia pensar em como as crianças são cruéis, em como o mundo é cruel e em como aquela menininha se sentia. e foi alí nessas horas sentado no corredor do hospital, tentando controlar a minha angústia e ansiedade, que eu entendi do que se tratava essa tal preparação. e eu pensei que minha filha poderia não ter esse poder incrível de bloquear o mundo exterior e que talvez ela precisasse de alguma coisa para quando eu não estivesse por perto. comprei um caderninho na lojinha de lembranças do hospital e comecei a escrever, naquele momento a minha ideia era escrever um livro. contar coisas legais para que ela pudesse ler e se sentir melhor, quando estivesse triste. é claro que essas coisas legais e histórias que eu quis e tentei escrever não renderam nada. porque, sendo bem realista, eu não sou um escritor, mesmo que sonhasse em ser. o fato é que eu pensei em várias palavras bonitas e escrevi uma em cada página do caderinho, com a esperança de escrever uma história para cada uma delas mais tarde. Eu não consegui, o caderninho ficou só com as palavras mesmo e algumas definições abaixo delas, que eu mesmo inventei ou roubei.
hoje, eu tô aqui de volta, esperando em outro corredor daquele mesmo hospital e o branco nem me incomoda mais. tô com o pequeno dicionário de palavras bonitas nas mãos, foi esse o “título” que demos ao “meu livro”, ao caderninho. a definição da palavra que está na página marcada por ela pra mim diz ” palavra existente somente na língua portuguesa, é nossa e de mais ninguém. significa sentir falta e é bonita porque sentir falta querer de volta, querer por perto, é tipo amar”. os médicos falaram que não deve levar nem quatro horas, mas ainda sim a coisa toda parece que nunca vai acontecer, o que, até certo ponto, me alivia, porque, sinceramente eu sei-lá como a vida será depois disso.